Lei Maria da Penha: as inconstitucionalidades da Lei nº 13.827/2019.
No dia 13 de maio de 2019 foi sancionada a Lei nº 13.827/2019 que alterou a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) para autorizar a aplicação de medidas protetivas de urgência, pela autoridade judicial ou policial, à mulher em situação de violência doméstica e familiar, ou a seus dependentes, e determinar o registro da medida protetiva de urgência em banco de dados mantido pelo Conselho Nacional de Justiça.
A Lei Maria da Penha está em vigor há mais de 13 anos e é inegável sua importância numa sociedade ainda machista e desigual. A citada Lei trouxe inúmeros avanços de proteção às mulheres por sua vulnerabilidade. Por mais que ocorram inúmeras campanhas/propagandas de conscientização ao combate à violência doméstica, os números continuam crescendo, acredito também pelo fato das vítimas terem mais coragem em denunciar o agressor.
O fato da violência exteriorizar de diversas formas e âmbitos torna-se necessário, em muitos casos, a necessidade da medida protetiva de urgência para que uma situação mais grave não ocorra. A vítima não pode ter receio em noticiar à autoridade policial qualquer fato delituoso, por mais que o fato não seja considerado grave pelo mesmo, como xingamentos, ameaças, lesões corporais leves, pois as condutas do agressor costumam ser progressivas até uma das mais gravosas que é o homicídio qualificado pelo feminicídio. Portanto, se a vítima procurasse à autoridade policial, Poder Judiciário para obter uma medida protetiva de urgência poderia dificultar a consumação do delito pelo agressor.
Não abunda repisar que, a Lei nº 13.641/2018 tipificou como crime o descumprimento de decisão judicial que defere medidas protetivas de urgência com pena de três meses a dois anos de detenção.
Dessa forma, não paira dúvida que a medida protetiva de urgência é importantíssima para assegurar a integridade da vítima de violência doméstica, logo é preciso fiscalizar o cumprimento de tais medidas. A Polícia Militar da Bahia tem um projeto denominado Ronda Maria da Penha que visa prevenir e reprimir a violência doméstica e familiar, além de fiscalizar o cumprimento das medidas protetivas de urgência. Trata-se de um programa de grande valia para sociedade e que deve ser ampliado para alcançar o maior número de vítimas.
Acontece que, algumas inovações trazidas na Lei nº 13.827/2019 entendo que são inconstitucionais. O art. 12-C da Lei Maria da Penha passou a vigorar assim:
“Art. 12-C. Verificada a existência de risco atual ou iminente à vida ou à integridade física da mulher em situação de violência doméstica e familiar, ou de seus dependentes, o agressor será imediatamente afastado do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida:
I – pela autoridade judicial;
II – pelo delegado de polícia, quando o Município não for sede de comarca; ou
III – pelo policial, quando o Município não for sede de comarca e não houver delegado disponível no momento da denúncia.
- 1º Nas hipóteses dos incisos II e III do caput deste artigo, o juiz será comunicado no prazo máximo de 24 (vinte e quatro) horas e decidirá, em igual prazo, sobre a manutenção ou a revogação da medida aplicada, devendo dar ciência ao Ministério Público concomitantemente.
O art. 2º da Constituição Federal de 1988 consagra o princípio da separação dos poderes entre o Executivo, Legislativo e Judiciário, de modo que, qualquer decisão judicial deve ser realizada por uma autoridade Judicial.
Contrariando o artigo citado da Carta Magna, o art. 12-C, inciso II estabelece a possibilidade de o delegado determinar o afastamento do agressor quando o Município não for sede de comarca. É totalmente inconstitucional uma lei que possibilita Delegado de Polícia tomar uma decisão judicial de afastar uma pessoa do lar.
É sabido que Delegado de Polícia trata-se de uma carreira jurídica, importantíssima no Estado Democrático, privativa de Bacharel em Direito, e que deve ser dispensado o mesmo tratamento protocolar dos magistrados, membros da Defensoria Pública, Ministério Público e advogado, contudo a carreira de Delegado pertence ao Poder Executivo, e não, ao Poder Judiciário. Cabe ao delegado de Polícia conduzir a investigação criminal por meio de inquérito policial ou outro procedimento para apurar as circunstâncias, da materialidade e autoria das infrações penais, logo não tem atribuição de julgador, pois é exclusiva do Poder Judiciário.
Na sequência, o inciso III do art. 12-C é mais absurdo, pois prevê a possibilidade do Policial poder também determinar o afastamento do lar do agressor. Esta previsão ultrapassa a razoabilidade, pois dará azo a ilegalidades e abusos, visto nem todos os Policiais terem conhecimentos jurídicos aprofundados. Destaca-se ainda que, o inciso III do aludido artigo é genérico pelo fato de sequer estabelecer qual policial, pois temos a Polícia Judiciária, Administrativa.
Não abunda repisar que, nem todos os Estados à carreira de policial são exigidos formação em nível superior, quiçá, em Direito, portanto é uma temeridade e resultará em abusos e violação à dignidade da pessoa humana. Afinal pessoas que não são investidos da função de Juiz, sem conhecimento jurídico, tomarão decisões de grande relevância.
Entendo que mesmo à lei prevendo que o Juiz será comunicado da decisão do afastamento do lar no prazo máximo de 24 horas, permitir que um policial determine que um cidadão saia do seu lar é um ato vexatório que viola a imagem, honra, reputação do ser humano. Portanto a decisão que defere uma medida protetiva de urgência do afastamento do lar precisa ser fundamentada por um Juiz togado e utilizada em casos extremos e necessários.
O Estado Democrático de Direito precisa criar leis e mecanismos de proteção às vítimas de agressões domésticas, contudo as leis criadas não podem violar a própria Constituição Federal. Não é razoável criar uma lei que fere a Carta Magna sob a justificativa de proteger outro bem jurídico.
O art. 12-C nos seus incisos II estabelece a possibilidade do delegado determinar o afastamento do agressor quando não for comarca e o inciso III quando não for comarca e o delegado não estiver. Ora, tal permissividade é um desvirtuamento da norma, pois era necessário que o cidadão tivesse acesso ao Poder Judiciário de forma plena na sua cidade. Logo, esses incisos são apenas paliativos pelo fato do local não ser Comarca e/ou não ter delegado, e o correto seria possuir Autoridade Judicial em todas as cidades para que a sociedade tivesse um acesso à Justiça irrestrito.
Todas as formas de violência devem sempre ser combatidas, em especial, a violência doméstica. Contudo é preciso garantir os direitos aos cidadãos defender-se das alegações, bem como ser julgado por uma autoridade judicial competente e imparcial. Cumpre pontuar que, ainda encontra-se em vigor o princípio da presunção de inocência, no qual o cidadão só será considerado culpado após o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, por mais que muitos julgadores, inclusive, a maioria dos Ministros do Supremo Tribunal Federal tenha relativizado esse princípio constitucional.
Alberto Ribeiro Mariano Júnior. Advogado Criminalista. Professor universitário. Sócio do escritório Pinheiro & Mariano Advocacia e Consultoria. Especialista em Ciências Criminais pelo JusPodivm. Especialista em Direito do Estado pela UFBA. www.pmadvocacia.adv.br – alberto@pmadvocacia.adv.br @albertomarianojr @pinheiromariano.adv